Bar do Museu Clube da Esquina – 08/10/2020
FONTE: LIVRO DE MARILTON BORGES – MEMÓRIAS DA NOITE -2001 EDITORA ARMAZÉM DE IDÉIAS
06.11.96
O maestro e saxofonista Leopoldino Gandra, o Dino, era considerado por todos os músicos de nossa geração como um pai, um preceptor que ensinava aos mais jovens como transitar com segurança e decência pelos difíceis caminhos da noite.
Dino faleceu há alguns anos em Malacacheta, sua terra natal, e, como não podia deixar de ser, lecionando música e vida para crianças carentes e regendo uma banda por ele fundada naquela cidade.
Figuram entre seus fãs de carteirinha nomes como Nivaldo Ornelas, @agner Tiso, Paulinho Braga e Toninho Horta, pessoas entre tantas outras que, assim como eu, tiveram no Dino o primeiro e definitivo grande exemplo de profissionalismo e amor à música.
Naquela época proliferavam os festivais de jazz e bossa-nova, sendo que, se por um lado sobravam músicos talentosos, por outro faltavam produtores competentes – sei não, mas sem querer comprar briga, trata-se de um problema que continua até hoje. A verdade é que, na maioria das vezes, naquele tempo, eram os próprios músicos que se “viravam” para organizar os eventos onde pudessem mostrar um pouco de sua arte, ainda que, por este motivo, nem tudo corresse de acordo com o esperado.
Foi assim que, sonhando com um provável sucesso no Rio de Janeiro, lotamos um ônibus de carreira para tocar em um festival no Clube da Aeronáutica, nas imediações do Aeroporto Santos Dumont. A produção foi feita por alguns músicos mineiros e suas respectivas namoradas cariocas, num arranjo muito mais familiar do que profissional. Tirante os percalços da viagem, que com certeza contarei numa outra oportunidade, chegamos ao clube em cima da hora, e, para nossa decepção, os “produtores” não fizeram a divulgação adequada: o lugar encontrava-se entregue às moscas.
Ainda que tenhamos conseguido arrebanhar alguns oficiais e soldados que encerravam seu turno de serviço, para assistir ao show, naquele momento chegamos à conclusão de que éramos maioria esmagadora na contagem final de pessoas presentes. Nossa estratégia, então, foi dividir o espetáculo em duas partes, separadas por um pequeno intervalo, para que, através de um revezamento, aqueles que não fossem atuar na primeira parte, engrossassem o minguado “quórum” existente na plateia.
Abrindo o festival, o hepteto de Aécio Flávio, impecável no tocar e no vestir, dá início à função, saudado entusiasticamente por nós, que só iríamos entrar em cena na segunda parte e, moderadamente, poderíamos assim dizer, pelos abnegados militares, personagens involuntários de tão estranha cena. Chamavam a atenção de todos, entretanto, não só os bem talhados “smokings” vestidos pela banda, como também o lindo sapato social calçado pelo Dino, num só pé, já que no outro ele exibia uma surrada sandália japonesa, graças a um doloridíssimo e pra lá de maduro panarício, que, envolvido em gaze e esparadrapo, dobrava as dimensões de seu dedão esquerdo.
Prudente como poucos, na segunda música, o Dino tratou de esconder o pé lesionado atrás da cortina de fundo do palco, num compreensível e natural instinto de preservação do que restava de sua dolorida unha. Só que ele não contava com o trânsito, nos bastidores, de técnicos de som, contra-regras e músicos que iriam participar da primeira parte.
Exatamente no meio de um belíssimo solo de Dino, uma nota agudíssima, quase um gemido, absolutamente incoerente com o que estava sendo executado, saiu do bojo de seu saxofone, É claro que alguém pisara em seu pé oculto, e, após aquele pequeno descontrole nosso herói retomou o solo quase que normalmente, ainda que duas grossas lágrimas molhassem seu rosto.
Um recruta ao meu lado, na plateia, mandou seu comentário imediatamente:
-É, esse “coroa” é demais… Tem tanto sentimento que até chora quando está solando…