Roteiros Turísticos

Milton Nascimento fala do Bar do Museu Clube da Esquina e de suas expedições a Amazonia

24/03/2019 – Victor Sousa

Milton Nascimento fala do Bar do Museu Clube da Esquina e de suas expedições a Amazonia

Minha primeira viagem ao coração da Floresta Amazônica aconteceu em 1982. Foi durante as filmagens de “Fitzcarraldo”, do diretor Werner Herzog, em que apareço numa cena gravada no magnífico Teatro Amazonas junto com Claudia Cardinale e Klaus Kinski. Alguns anos depois, em setembro de 1989, fui pela segunda vez.

Viajei com uma expedição que contou com a atenciosa pesquisa do antropólogo Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental (ISA), e que percorreu o Rio Juruá a partir do município de Cruzeiro do Sul, no estado do Acre, até a fronteira com o Peru.

O trajeto todo durou 18 dias de barco, e as inúmeras horas de conversas e trocas de experiências com ribeirinhos e indígenas foram fundamentais para o que culminou na gravação do disco “Txai”, lançado em 1990. Esta palavra tem um significado muito importante para mim, por isso tomamos a decisão de batizar o disco com ela. Numa tradução literal, quer dizer: “Mais que amigo/ mais que irmão, a metade de mim que existe em você/ e a metade de você que habita em mim.”

O termo txai , palavra original da linguagem dos índios Kaxinawá, é usado tradicionalmente como uma forma de cumprimento/saudação para demonstrar carinho e respeito entre os homens: “Companheiro, a outra metade de mim.” Para as mulheres, é usada uma palavra similar, algo como txai-ta .

O  álbum “Txai” é parte de uma campanha mundial de apoio à Aliança dos Povos da Floresta sob orientação da União das Nações Indígenas. E esta parceria nunca mais se desfez. Mas devo confessar que, com as viagens, as turnês e as muitas gravações que me ocuparam o tempo durante todos esses últimos anos, me distanciei fisicamente da Floresta Amazônica.

Digo fisicamente porque minha cabeça sempre esteve lá. A “distância” durou até fevereiro de 2018, quando fui convidado por um amigo, o ator Daniel de Oliveira, para conhecer o hotel Mirante do Gavião, localizado no município de Novo Airão (AM), às margens do Rio Negro, ponto de partida da Expedição Katerre.

O Rio Negro como testemunha

Desde 1989, nunca mais tinha feito nenhuma incursão à Floresta Amazônica. E o Daniel não somente me levou para dentro da Amazônia novamente como também me apresentou Ruy Tone, um dos responsáveis pela Expedição Katerre, com a qual já tive a oportunidade de fazer duas viagens para dentro do Rio Negro e de seus afluentes a bordo do barco Jacaré-Açu.

A última delas aconteceu há poucos meses, e foi a mais longa. Passamos oito dias embarcados no Jacaré-Açu, sob a liderança do capitão Tito, um dos maiores especialistas em navegação pelo Rio Negro.

O município de Novo Airão, de onde partimos com o Jacaré-Açu, tem 17 mil habitantes, e está localizado a quase 200 quilômetros de Manaus, onde se encontra o Parque Nacional de Anavilhanas, uma área federal de proteção considerado um dos maiores arquipélagos do mundo, formado por mais de 400 ilhas, além de lagos, afluentes e igarapés.

E foi exatamente dessa fauna e flora tão específicas que tomamos conhecimento durante nossa viagem a bordo da Expedição Katerre. Sem esse suporte como guia, jamais teria tido a chance de conhecer essa face da Amazônia. Sem dúvida, uma das maiores experiências da minha vida.

Além do conhecimento natural do ambiente, outra experiência marcante que passei a bordo do Jacaré-Açu foi quando chegamos à região do médio Rio Jauaperi, um importante afluente do Rio Negro, logo abaixo do Rio Branco. Lá, conhecemos a Escola Vivamazônia, na comunidade Gaspar, no Rio Jauaperi. São crianças entre 6 e 14 anos que, diariamente, frequentam as aulas ministradas por Bianca, uma professora italiana que há mais de 25 anos se dedica à alfabetização e à educação formal de crianças do Jauaperi, e por seu marido, o escocês Paul Clark, com o auxílio do filho Ian, de 14, também aluno da escola, canoeiro, exímio pescador e já um profundo conhecedor da floresta.

Minha emoção com o projeto de Paul e Bianca foi tão grande que disse ao meu filho, Augusto, que gostaria de fazer um show na escola, apenas para os alunos e professores. Foi minha forma de contribuir e mostrar minha eterna gratidão por este projeto tão importante. Além da escola, Paul, Bianca, Ian e os alunos mantêm um projeto de preservação de praias para a reprodução de quelônios, umas das 16 espécies conhecidas de tartaruga.

E para monitorar diariamente as quatro praias mais ameaçadas, a Escola Vivamazônia recebe uma ajuda especial da Associação de Artesãos do Rio Jauaperi (AARJ), cujo presidente, Francisco Paredes, tive o privilégio de conhecer pessoalmente. Juntos, visitamos as praias onde acontece a desova dos quelônios. Numa delas, deixamos o Jacaré-Açu às cinco da manhã e subimos o rio numa voadeira para acompanhar de perto o empenho da escola Vivamazônia para diminuir o índice absurdo do tráfico de animas na região.

Essas duas últimas expedições que fiz pelo Rio Negro me colocaram mais uma vez diante de uma questão crucial: a urgente preservação da Floresta Amazônica. Na história do Brasil, tivemos grandes defensores de nossas florestas, e não apenas da parte amazônica. E hoje, mais do que nunca, não podemos fechar os olhos diante do legado de Chico Mendes, Dorothy Stang, Dom Pedro Casaldáliga, Marcos Veron, Marçal “Tupã’i” de Sousa e Davi Kopenawa.

Durante muito tempo, dizia-se que a Amazônia era o pulmão do mundo. Nesse ponto, concordo e digo mais, já citando o pesquisador João Meirelles Filho: “O bioma Amazônia seria como um ar-condicionado do planeta. A floresta é uma esponja que absorve água vinda do Oceano Atlântico e a mantém no ambiente. O desmatamento altera o ciclo da água. Nos últimos 40 anos, o desmatamento destruiu 76,2 milhões de hectares, equivalente a toda a região Sul e a maior parte do estado de São Paulo.”

“O arquipélago de Anavilhanas é das coisas mais sensacionais que pude ter a chance de conhecer”

O arquipélago de Anavilhanas é das coisas mais sensacionais que pude ter a chance de conhecer. Durante toda a viagem, é possível observar algumas espécies raras na bacia do Rio Negro, como jaburus, araras vermelhas e macacos cuxiús, que são normalmente avistadas na área percorrida pelo Jacaré-Açu. Por isso, a importância de projetos como a Expedição Katerre, que proporciona uma forma de turismo sustentável como alternativa de renda às populações tradicionais, cujo acúmulo de capital acontecia pela exploração não controlada da natureza.

Uma biografia escrita nas esquinas do Brasil

“Sair desta cidade ter a vida onde ela é/ Subir novas montanhas diamantes procurar/ No fim da estrada e da poeira/ Um rio com seus frutos me alimentar/”. A letra é da canção “Saídas e bandeiras” e exemplifica o que viajar significa na vida e na obra de Milton Nascimento, segundo o antropólogo Paulo Thiago de Mello, autor do livro “Clube da Esquina: Milton Nascimento e Lô Borges”:

— Entre o interior e a cidade, o urbano e o rural. A ideia de viagem, na obra e na vida de Milton Nascimento, é desse encontro, que também acontece na subjetividade, de ver a diferença, ter essa descoberta. Por isso, o tema está tão presente na sua obra. Suas viagens são mesmo em busca de conhecer esse Brasil primitivo, tanto físico como abstrato.

“Saídas e bandeiras” é parte do icônico “Clube da Esquina”, lançado em parceria com Lô Borges, em 1972, e que é recheado de referências deste “sair do lugar e de si”, diz Paulo Thiago. Diversas outras canções do álbum têm essa temática, como “Cais”, “O trem azul” e “Paisagem da janela”:

— Quase que o álbum inteiro está ligado nessa ideia do deslocamento, do geográfico, do artístico, do cultural e do abstrato.

Mas a foto…

A foto de dois meninos num chão de terra batida que ilustra a capa do disco se tornou símbolo do movimento musical mineiro, que surgiu no boêmio bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte. Apesar de conectada à música de Minas Gerais, a imagem foi registrada, na verdade, em Nova Friburgo (RJ), pelo fotógrafo pernambucano Cafi (1950-2019). Na época, os pais de Milton moravam perto da cidade fluminense.

Terra (quase) natal

Milton Nascimento é símbolo de Minas Gerais, mas o artista, na verdade, nasceu no Rio de Janeiro. Ele foi adotado por um casal e, ainda criança, foi morar em Três Pontas, no sul de Minas. Foi lá que ganhou o apelido de Bituca.

Atualmente, há na cidade o Centro Cultural Milton Nascimento, onde são realizados espetáculos de música, dança e teatro. Lá são ministrados oficinas e cursos para crianças e adultos da comunidade local. Também é possível conhecer a casa onde o artista morou na cidade.

Juscelino

Numa dessas viagens, mais especificamente entre Lumiar, distrito de Nova Friburgo, até Ouro Preto, o grupo encontrou Juscelino Kubitschek em Diamantina. É a terra natal do ex-presidente, que ouviu Bituca cantar, na praça principal da cidade, em 1971.

Beco do Mota

“Na porta do beco estamos/ Procissão deserta, deserta/ Nas portas da arquidiocese desse meu país/ Diamantina é o Beco do Mota/ Minas é o Beco do Mota/ Brasil é o Beco do Mota/ Viva o meu país/”. Além de palco do encontro com o presidente, a histórica cidade de Diamantina também foi inspiração para a canção “Beco do Mota”, de Milton Nascimento em parceria com Fernando Brandt.

Desde o interior…

A imagem de Milton Nascimento vive pelo interior de Minas. Em Barbacena, na Serra da Mantiqueira, fica a Bituca — Universidade de Música Popular, criada em homenagem ao artista. A escola gratuita oferece cursos técnicos de música e de diversos instrumentos. A instituição fica num prédio típico das cidades históricas do estado, do século XIX, e tem paisagismo feito pelo Instituto Inhotim. Milton é padrinho da escola e apoiou o projeto, que foi realizado pelo grupo Ponto de Partida.

A Capital e o Bar do Museu Clube da Esquina

“Barulho de trem, parte de um cá/ Chegando um expresso, vem de lá/ E para completar o original/ Há sempre a despedida fatal/ Abraço normal, feliz de mim/ Não venho despedir de ninguém/ Feliz de mim/ Sou livre desse tal vai e vem/”. A canção “Barulho de trem” foi a primeira gravada por Milton Nascimento. Foi em Belo Horizonte, em 1961. Já fazia alusão ao deslocamento para o interior do país, embora, neste caso, o artista se coloque como espectador. As suas “viagens” começariam, de fato, na esquina simbólica das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro Santa Tereza, onde os músicos se encontravam na década de 1960 e onde, mais tarde, fundaram o clube.

Sobre a capital mineira, Milton Nascimento e Lô Borges escreveram a música “Os povos”, que conta a história de exploração da cidade e do estado: “Na beira do mundo/ Portão de ferro, aldeia morta, multidão/ Meu povo, meu povo/ Eh, minha cidade/ Aldeia morta, anel de ouro, meu amor/ Na beira da vida/ A gente torna a se encontrar/”.

No mesmo bairro onde o clube foi fundado, funciona hoje o Bar do Museu Clube da Esquina, que homenageia o movimento musical mineiro. Além de exibir um acervo histórico, oferece passeio guiado pelas ruas vizinhas. E, tem, claro, uma programação musical intensa.

Créditos: O Globo: Milton Nascimento fala de suas expedições a Amazonia.

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