07/07/2020 Bar do Museu Clube da Esquina
FONTE: LIVRO DE MARILTON BORGES – MEMÓRIAS DA NOITE – 2001 EDITORA ARMAZÉM DE IDÉIAS
AMNÉSIA
23.04.97
Todo músico de talento, que sonhe ganhar algum dinheiro, deverá ter em sua retaguarda alguém que conheça bem a arte de comercializar seus dotes artísticos, eis que estes dois tipos de habilidade, por absoluta incompatibilidade, jamais se misturam, tal qual água e óleo.
Existem alguns iluminados que conseguem conciliar ambas as coisas, mas são tão poucos que, provavelmente, entrarão para a história, que, como se sabe, contempla as exceções e condena ao limbo do anonimato o cidadão discreto, normal, comum. Resumindo, se você conhece um músico muito bem de vida, ou ele tem um ótimo empresário ou, desculpe a franqueza, não é tão talentoso quanto você imagina. Depois de trinta anos de janela, vendo músicos de primeira morrendo à míngua e outros, nem tão bendotados, incorporados à nobreza de Oropa, França e Bahia, esse misto de tecladista e cronista (ambos comuns) chegou a esta conclusão.
Foi o desconhecimento destas dolorosas regrinhas básicas que levou o Maestro Hilário, um baita dum guitarrista e violonista, a propor à diretoria do Palmeiras, tradicionalíssimo Clube de Santa Efigênia, o arrendamento do bar lá existente. O Hilário, por sinal, já foi objetivo de um outro capítulo destas memórias, o do picolés, e certamente será de outros, mercê de seu caráter ingênuo e simples, mas, sobretudo, íntegro.
Noite de seresta e a fina flor do gênero presente ao evento. Tinha Gilberto Santana, Delphininho Santa Rosa, Celso Garcia, Geraldo Tavares e uma multidão de convidados e associados que se deliciavam com as mais inesquecíveis pérolas do nosso cancioneiro popular (Falei bonito).
Nesta multidão, destacava-se pelo seu porte avantajado e pela mansidão de seus olhos azuis o Doutor Múcio, grande cirurgião-dentista e amigo do peito dos artistas presentes, Hilário inclusive. Como único violonista no recinto, o Maestro não sabia se dava conta do bar ou se acompanhava os cantores, motivos que o levaram, em um determinado momento da festa, a perder o controle completo da situação. Foi assim que, quem quis beber, bebeu; quem quis comer, comeu, e quem se lembrou de pagar a conta, pagou.
O próprio arrendatário desconhecia, encerrada a festança, o que ele próprio consumira, o que, diga-se de passagem, não fora pouco.
Dia seguinte, final de tarde, no horário tradicional de reunião dos boêmios do Clube, o Doutor Múcio chega aflito até o Hilário e pergunta quanto lhe devia, pois, pela sua lembrança da noite anterior, não havia saldado sua conta. O violonista coçou a cabeça e mandou esta:
– Doutor Múcio, com quantos uísques o senhor fica tonto?
– Ora, eu fico meio alegrinho com umas seis ou sete doses, respondeu o dentista, sem entender direito o motivo da pergunta.
– Então o senhor me pague uma garrafa, pois o senhor saiu daqui quase que carregado…
E estendeu a mão esperando o cheque, sem entender direito as gargalhadas da turma