BAR DO MUSEU CLUBE DA ESQUINA – 19/6/2020
Texto extraído do Livro: Marilton Memórias da noite
S MIL E UMA UTILIDADES DE UM OLHO DE VIDRO
Aécio Flávio é um dos mais competentes e importantes músicos da minha geração. Belo Horizontino da Renascença, bairro onde ainda moram muitos dos seus inúmeros irmãos, entre eles o Silvinho, que marcou época como atacante rápido e habilidoso do Vasco da Gama, Aécio mora há muitos anos no Rio de Janeiro e é um dos mais respeitados profissionais do competitivo mercado carioca, além de sócio do conhecido produtor e showman Mièle num bem montado estúdio de gravação.
Na condição de protagonista de algumas dezenas de casos hilariantes, entretanto, é que o grande músico e maestro mineiro, dono de altíssimo astral e dera inteligência, é muitas vezes lembrado pelos seus amigos (entre os quais honrosamente me incluo), sendo que relembrar e contar alguns desses casos, de vez em quando, é uma das formas que encontrei para, a meu modo e sempre que possível, homenageá-lo.
Um detalhe físico do Aécio chama a atenção das pessoas que o vêem, pela primeira vez, quer seja no trabalho ou na vida particular: uma das suas cavidades oculares é ocupada por um olho de vidro, pois o original, foi vazado por um foguete, ainda na sua mais tenra infância. No trabalho, principalmente no palco, o músico usa uma vistosa venda preta, que é colocada de forma a cobrir quase todo o seu rosto, conferindo-lhe ares de pirata moderno, a esgrimir uma espada imaginária, só que em forma de teclado ou de piano. Na vida particular, mais discretamente, um par de óculos escuros contorna o problema, ainda que o Aécio também tire partido do olho de vidro, de maneira inteligente e criativa, para outros fins, como veremos a seguir.
Tudo aconteceu aqui em Beagá, lá pelos anos 60, quando a Banda Bacana de Aécio Flávio ainda era uma das maiores atrações dos nossos salões elegantes. Depois de um dia inteiro atribulado, de muito trabalho, sem tempo nem para um mísero lanche que fosse, o Aécio ainda teve que encarar um baile de cinco horas, daqueles em que os relógios batem seis da manhã mas não batem três, hora de encerramento do serviço musical (estes são termos bem humorados que os trabalhadores da noite sempre usam quando o tempo demora a passar). Fim de baile e lá se foi o nosso herói, seguido de perto por um punhado de outros seus companheiros de batalha, à procura de um restaurante para aliviar a fome, que, àquela altura dos acontecimentos, deixava quase que coladas suas paredes intestinais.
O restaurante Rosário, que ficava no centro de Beagá, mais precisamente, na Avenida Paraná, entre Tupinambás e Caetés, era um estabelecimento que funcionava 24 horas por dia, sendo que, pela sua localização privilegiada, era o estuário natural de toda a flora e fauna noturna da cidade, que lá, entre umas e outras, encerrava o seu expediente. Naquela noite e na mesa grande, ocupada por muitos músicos e diversos simpatizantes da categoria, o sono começou a tomar conta do Aécio, tão logo ele encerrou sua refeição. Foi neste momento que um “mala” qualquer começou a puxar um assunto comprido com o músico, que, pacientemente e em silêncio, ouviu uma meia hora ou mais de papo furado.
Cotovelo na mesa, com a mão espalmada, que tapava sua vista boa, fechada e adormecida, ao mesmo tempo que lhe apoiava o queixo, Aécio usou o olho de vidro, permanentemente aberto, como seu representante na conversa pouco interessante. O interlocutor enjoado só entendeu que falava sozinho quando o maestro, completamente adormecido, emitiu o primeiro e sonoro ronco. É claro que o cara despistou e saiu, de fininho, para deleite e gargalhadas daqueles que, como eu, acompanhavam, do outro lado da mesa, a pitoresca cena