Roteiros Turísticos

MILAGRES AINDA ACONTECEM

Mestre Affonso Samba.jpg

Bar do Museu Clube da Esquina – 08/10/2020

FONTE: LIVRO DE MARILTON BORGES – MEMÓRIAS DA NOITE -2001 EDITORA ARMAZÉM DE IDÉIAS

 

Existem alguns amigos que, depois de algum tempo, transcendem desta condição para serem transformados, praticamente, em nossos irmãos consanguíneos, tamanha a identificação de propósitos e, principalmente, pela semelhança de atitudes, tais como as nossas, diante das alegrias e vicissitudes da vida. Para minha felicidade, tenho na minha história uns quatro ou cinco destes camaradas, sendo que posso apontar, com tranquilidade, o Mestre Afonso, como um dos integrantes deste meu restrito e exclusivo inventário de companheiros mais chegados, tão raros quanto cabelo branco em cabeça de político.

Tintas e produtos químicos à parte, volto a falar do Afonso, figura conhecida e respeitada no meio do samba, onde adquiriu, com justiça, a colocação da palavra “Mestre” antes do seu nome de batismo, por causa da infinidade de títulos que ganhou como chefe de bateria de diversos blocos carnavalescos e das principais escolas de samba de Beagá, é claro que bem antes que elas fossem brutalmente assassinadas, como foram, há alguns anos atrás, por uma meia dúzia de insensíveis burocratas classe média instalados, naquela ocasião, no poder municipal.

Uma das principais características pessoais do Mestre, entretanto, era o seu corpo volumoso contrastando com o seu coração singelo de menino, era a voz rouca, ultimamente, quase inaudível, fato ocasionado por alguns calos nas cordas vocais que ele cultivava há mais de 25 anos e que já passavam da hora de sofrer uma intervenção cirúrgica, que, sei lá por quê, o Afonso teimava em não fazer. Usei o tempo do verbo no passado porque, num outro dia, ao ligar para a casa do meu amigo, tomei um baita susto com a voz tipo Cid Moreira que me atendeu do outro lado da linha. Custei a acreditar que era ele mesmo quem falava e foi aí que me contou a história da recuperação da sua voz, que, pela sua absoluta singularidade, passo, a partir daqui, a contar.

Segundo o Mestre, a coisa começou a ficar esquisita quando ele ia saindo de casa. O seu automóvel entrou numa de não “pegar”, por mais que virasse a chave. Irritado, Afonso murmurou para o carro que iria ao seu destino com ele ou sem ele, já que seu compromisso era muito importante e sobretudo, nobre. É que alguns jovens da Pedreira Prado Lopes, antigamente no mau caminho, tinham mudado de rumo, se tornado evangélicos, e queriam que o Mestre Afonso avaliasse o seu recém-criado grupo de pagode, que se apresentaria numa determinada igreja. Parece que a máquina entendeu o recado do seu proprietário e, sem que nem pra que, voltou a funcionar, levando o meu amigo ao destino pretendido.

Sentado numa beirada de banco, Mestre Afonso ouvia o som da rapaziada quando, de repente, percebeu num canto do templo uma grande luminosidade, junto com a figura de Cristo, que, sem maiores delongas, caminhou em sua direção e, espantosamente, entrou para dentro do seu corpo. Sem entender direito o ocorrido e ainda com os olhos um tanto ofuscados pela claridade, que, agora, ele sentia , vez por outra, dentro de si, o meu amigo, encerrada a apresentação, despediu-se de todos, com a sua voz rouca de sempre e se mandou pra casa.

Na manhã do dia seguinte, ao abrir a porta de sua residência para dois amigos foi que, segundo ele, o grande susto aconteceu. Ao cumprimentar os visitantes, sua voz soou forte, limpa, grossa, sem nenhuma rouquidão, o que não deu em outra: os dois saíram correndo para a rua e o Mestre Afonso, assustado para dentro de casa.

O fato ocorreu há uns oito meses e o Mestre Afonso, quem diria, até anda cantando um monte de sambas bonitos, daqueles que só quem conhece a fundo a música brasileira, como ele, canta. Ele me contou este seu milagre particular com os olhos rasos de lágrimas de felicidade.

E cá estou, também emocionado, sem a intenção de qualquer proselitismo religioso, a narrá-lo também, e com muita alegria, para todos os amigos que me horam com a leitura deste canto de página.