Bar do Museu Clube da Esquina – 20/10/2021
FONTE: LIVRO DE MARILTON BORGES – MEMÓRIAS DA NOITE -2001 EDITORA ARMAZÉM DE IDÉIAS
09.04.97
Se nos dias de hoje a profissão de músico é abraçada por gente da classe média alta e pelos mais abastados, é certo que, na virada da metade do século e até pouco depois disso, grande parte destes profissionais vinha mesmo da baixa classe média e/ou da pobreza absoluta.
O chefe de orquestra ou de conjunto, em decorrência deste fator, assumia o papel de pai e professor de boas maneiras para quase todos os músicos, o que, de uma certa forma, prevenida alguns desastres de comportamento, ainda que muitos vexames, por inevitáveis, tenham acontecido.
Aqui mesmo nestas “Memorias…” tenho narrado alguns destes desacertos, que no fundo, poderiam gerar um outro tipo de discussão, ou seja, a eterna má distribuição de renda do País; o preconceito contra os pobres, vindo dos eu têm dinheiro; a abissal diferença entre quem teve acesso a uma boa educação e entre quem não teve direito a ela, etc.
Fiel, entretanto, à minha condição de observador atento da vida e sem me esquecer da minha própria origem, humilde, como a maioria dos meus colegas de profissão, lá vou eu para mais um “causo”, deixando estas reflexões politicas e sociais em aberto para os ocasionais leitores deste canto de papel.
Numa das inúmeras viagens internacionais do Célio Balona (lá vem o Balona de novo), integrava a sua banda um determinado músico que, ao contrário de outros mais tarimbados, jamais havia colocado os pés num avião. Aflito, no último ensaio ocorrido no dia anterior à viagem, queria porque queria saber a hora certa da saída do “aeroplano” (palavra dele) da Pampulha, já que era importante avisar a todos os seus familiares, que iriam até o aeroporto para o seu bota-fora. E não deu outra. Superlotou a área de embarque com pais, irmãos, filhos, cunhados, sobrinhos, mulher, vizinhos, cachorro e papagaio. Até aí tudo bem, se a viagem não fosse durar, como durou, apenas cinco dias. E lá se foi ele, pista afora, rumo ao avião, despedindo-se com acenos para sua multidão particular, como se correspondente de guerra fosse, partindo para uma perigosa batalha.
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Dentro da aeronave, sem saber o que fazer com o cinto de segurança, foi informado pelo malvado Balona de que bastava apertar ao máximo, até onde aguentasse, aquele curioso artefato, em volta da cintura, só podendo soltá-lo após ordem do próprio Balona, naquele momento transfigurado em líder da banda e comandante-em-chefe da missão.
Naquele tempo uma viagem Pampulha-Santos Dumont durava muito mais do que hoje e sabem como é-encerrados os procedimentos da decolagem, todo mundo se desvencilhou dos cintos de segurança, exceto, evidentemente, o nosso herói, de olho no Balona, que, por sua vez, nem se tocou.
Vestido com seu terninho de manequim uns dois números abaixo, o que aumentava sobremaneira seu desconforto, o músico, de origem militar, aguardou, sem entender bem, pacientemente, pela ordem que não vinha.
Meia hora, quarenta minutos, uma hora de viagem. Foi quando ouviu-se, vinda lá do fundo do avião, uma voz surda, rouca, quase sussurrante. O dono da voz tinha o rosto afogueado, os lábios violáceos e sua língua parecia não caber dentro da boca.
– Balona, deixa eu soltar este “trem” aqui, pelo amor de Deus, pois tem uns dois minutos que eu não estou sentindo os meus pés…
Retornando a Beagá, algumas horas de vôo mais experiente, nunca mais quis saber de tocar na banda do tal do Célio Balona…